O que aconteceu com você?
- Leide Patrícia Mozini
- 8 de jul.
- 4 min de leitura
Atualizado: 8 de jul.

Diante de uma criança com o que chamamos de "comportamento difícil" — seja ela desafiadora, apática ou agressiva —, nossa primeira reação, muitas vezes nascida da frustração, é perguntar: "Qual é o seu problema?".
Mas e se essa for a pergunta errada?
Para o renomado psiquiatra infantil Dr. Bruce D. Perry, prognósticos ruins não são uma sentença definitiva. Ele propõe uma mudança radical, mas profundamente simples, na nossa abordagem. Em vez de focar no "problema", deveríamos perguntar com genuína curiosidade e compaixão: "O que aconteceu com você?".
Essa troca de palavras carrega um poder transformador, capaz de reescrever histórias.
O cérebro em alerta: como o trauma molda a infância
Dr. Perry explica em sua obra que os primeiros meses de vida são um período crítico para a arquitetura do cérebro, especialmente para a calibração do nosso sistema de resposta ao estresse.
Imagine o sistema nervoso de um bebê como um alarme de incêndio. Em um ambiente seguro e previsível, esse alarme aprende a soar apenas em caso de perigo real. No entanto, se o bebê é exposto a ambientes negligentes, caóticos ou assustadores, seu alarme interno se torna hipersensível. Ele aprende a operar em estado de alerta constante, disparando ao menor sinal de ameaça, mesmo que ela não exista.
O resultado é uma criança (e, mais tarde, um adulto) que reage de forma desproporcional a estímulos comuns, com imensa dificuldade para regular suas emoções e seu comportamento. E o mais importante: mesmo que o ambiente mude e essa criança passe a viver em um lar seguro ou a frequentar uma escola acolhedora, os efeitos do trauma precoce permanecem impressos em seu corpo e em seu cérebro.
O perigo do olhar que julga
Aqui reside o grande desafio. Muitos dos nossos sistemas — escolar, judicial, de saúde e assistência social — ainda não estão preparados para essa compreensão. Eles interpretam os sinais claros do trauma (hiperatividade, dissociação, agressividade) como "mau comportamento", "preguiça", "desobediência" ou "falta de limites".
Essa visão míope leva a intervenções não apenas ineficazes, mas frequentemente prejudiciais. A criança é punida, medicada ou excluída, quando o que ela mais desesperadamente precisa é de segurança, previsibilidade e, acima de tudo, conexão afetiva. Reforçamos seu sofrimento em vez de aliviá-lo.
A cura está na conexão, não na "correção"
Se o problema não é o comportamento em si, mas a dor que o origina, a solução não pode ser a punição. A proposta do Dr. Perry é simples e poderosa: em vez de corrigir "comportamentos-problema", devemos investir em relações cuidadosas e ambientes previsíveis.
Ele sugere que os dois primeiros meses são importantíssimos, podem alterar drasticamente a trajetória de desenvolvimento de uma criança. Isso significa criar práticas, seja em casa ou na escola, que reconheçam os efeitos do trauma e invistam no vínculo, no afeto e na escuta como as principais ferramentas de cura.
Cuidado: a arte de escutar tem um tempo certo
Fazer a pergunta "O que aconteceu com você?" é o primeiro passo, mas ele nos convida a ouvir, e não a interrogar. Há um tempo e uma dose certa para que a memória de um trauma venha à tona de forma segura. Forçar essa conversa pode ser devastador.
No livro “O que aconteceu com você? Uma visão sobre trauma, resiliência e cura”, Dr. Perry ilustra isso com uma história comovente:
Um garotinho de 3 anos presenciou o assassinato de sua mãe durante um assalto em casa. Um tempo depois, no caixa de uma loja, o menino olhou para a funcionária e disse de repente: "Minha mãe está morta. Mataram ela."
A mulher do caixa, com gentileza, respondeu: "Ah, querido, sinto muito." E foi só.
O pai, bem-intencionado, ficou preocupado, achando que o filho precisava "colocar para fora". No estacionamento, ele começou a puxar o assunto, falando sobre a saudade e as boas lembranças da mãe. A intenção era boa, mas a dose de emoção foi avassaladora para o cérebro da criança. O menino começou a se balançar, gemer e tapar os ouvidos, completamente desregulado. Em pânico, saltou do carrinho e correu em direção à rua.
A lição é clara: a interação com a moça do caixa foi uma "dose terapêutica" perfeita. Durou segundos, foi iniciada pela criança e ofereceu um conforto imediato e seguro. O pai, ao forçar a lembrança, reabriu a ferida de forma insuportável.
Nosso papel não é ser o terapeuta, mas criar um espaço seguro para que essas pequenas revelações espontâneas possam acontecer.
Conclusão: trauma não é destino
O trauma precoce deixa marcas profundas, mas elas não precisam ser permanentes. Quando pais, cuidadores, professores e profissionais passam a enxergar o comportamento infantil através das lentes do trauma, um novo caminho se abre — um caminho de cura, resiliência e desenvolvimento saudável.
Como resume Dr. Bruce Perry, uma criança não precisa ser consertada. Ela precisa ser compreendida.
E no mundo adulto? Essa compreensão começa com a pergunta essencial que devemos fazer primeiro a nós mesmos, afinal, a nossa história nos trouxe até aqui. Podemos então oferecê-la também ao outro: "O que aconteceu com você?".
Fonte: PERRY, Bruce D.; WINFREY, Oprah. O que aconteceu com você: uma visão sobre trauma, resiliência e cura. Tradução de Elisa Nazarian. 1. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2022. E-book.







👍
Importante lembrarmos que todo pensador ou cientista possui críticas, não seria diferente com o Dr. Bruce Perry.
Grata pela visita😍
Adorei
Até me identifiquei
Parabéns
Muito bom👏